Dora
e o gato
Por Milene Barazzetti
A
história que eu vou contar é a pura verdade. Meu avô me contou e jurou de pé
junto que aconteceu. Pareceu caso encerrado, mas nada foi solucionado.
Tudo
começou com o desaparecimento de uma velha senhora, vizinha da casa dele, no
dia 24 de dezembro de 1934, lá mesmo na Rua 24, exatamente às 24 horas. A hora
é precisa, pois se ouviu ao invés de doze, vinte e quatro badaladas dos sinos
da Igreja São Francisco, marcando meia noite.
Conta-se
que como era véspera de Natal todos saíram à rua para felicitarem uns aos
outros. Morava ali uma senhora chamada Dora. Ela não deu sinal de vida naquele
dia. Mesmo vivendo sozinha, sem ninguém, ela sempre saia para ver a decoração
de Natal, apesar de não retribuir nenhum sorriso dos vizinhos.
Dora vivia
assim, mal humorada o tempo todo. Odiava crianças, homens e mulheres, maldizia
Deus e principalmente, odiava os gatos que viviam soltos e teimavam em rondar
sua casa.
Ela gritava com as crianças que chegavam perto,
gesticulando com um sapato preto de salto alto na mão:
-
Meninos saiam da minha janela, parem com essas pedras e tirem seus animais
pulguentos da minha calçada. Eu não respondo por mim! Ainda mato um desses
gatos com a sola do meu sapato e arranco as orelhas de vocês!
Os meninos
sempre corriam, junto com os animais, insetos e tudo o mais que estava por
perto, ao som dos seus berros. Mesmo assim eles adoravam atiçar a velha senhora
atirando pedras em suas vidraças.
Dora era uma pessoa acinzentada. Seus cabelos
eram negros e sem vida. Tinha a pele enrugada e uma corcunda nas costas que
deixavam todos que passavam perto de sua casa horrorizados. Ela era a própria
visão do inferno de tão feia e amargurada. Passar pela casa dela sozinho era a
prenda para os meninos que perdiam alguma disputa.
Com a
notícia do seu desaparecimento o Natal foi diferente naquele ano. Mesmo Dora
sendo uma senhora pouco sociável, as pessoas que viviam naquela rua preocupavam-se
uns com os outros, eram solidários e tentavam sempre convidá-la para participar
dos eventos. Os vizinhos diziam que ela não era vista desde o dia anterior.
Meu avô
e seus três melhores amigos João, Sebastião e Pedro foram incumbidos de
procurar a velha senhora. Diziam que eles, os quatro, eram melhores detetives
do que qualquer policial, pois conheciam aquela rua e suas travessas como
ninguém.
Os
quatro começaram a busca pela casa da malvada. Afinal era um casarão enorme e
ninguém havia procurado lá dentro. A verdade verdadeira mesmo é que as pessoas
não tinham coragem de entrar naquele lugar. Sobrou para meu avô e seus amigos.
Logo na entrada o ar já era putrefato. Os móveis tinham estilo vitoriano e eram
cheios de pelos pretos soltos sobre eles. Havia uma escada com várias fotos de
pessoas, que pareciam ter vivido por ali em várias épocas, na parede. Em cada
foto havia também um gato preto, sempre ao lado de uma menina.
Meu avô
e João resolveram subir as escadas enquanto os outros dois vasculhavam o
restante da casa. O cheiro forte de podre foi aumentando a cada degrau que subiam
até que...
-
Ahhhhhh!!! João e Anselmo corram aqui embaixo, corram aqui embaixo!!!!! –
gritou desesperado Sebastião.
Os
meninos então desceram correndo as escadas e viram seus amigos com os olhos
saltados.
- Que foi?
Encontraram a bruxa malvada? Hahaha – falou debochando João.
Sebastião
então jogou direto no amigo que estava rindo o sapato preto da Dora. Qual não
foi a surpresa de João quando viu que o sapato estava com a sola e salto todo
avermelhado.
- Isso
ééé sansansangue? – gaguejou João já perdendo toda a sua valentia e desabando
naquele chão imundo. Ele não podia ver sangue que passava mal.
Pedro
então mostrou a meu avô o gato preto que estava morto com uma perfuração na
cabeça, em frente à geladeira da cozinha. Era exatamente igual aos gatos das fotos
que haviam visto na escada.
Resolveram
então subir todos juntos ao andar de cima, deixando João lá embaixo descansando
um pouco com o gato morto. Ao chegar no quarto, Dora estava ela lá, deitada na
cama, com os olhos abertos, mortinha da silva. Meu avô conta que correram em
disparada e só pararam para pegar o João que ainda não havia acordado.
Fora da
casa todos esperavam os meninos e a polícia já havia chegado.
- Não
fomos nós que matamos a velha não!!! – gritaram os meninos para o pessoal da
rua, defendendo-se de quaisquer acusações.
Os
policiais entraram na casa rapidamente. Formou-se uma multidão de curiosos e
até o pessoal do jornal já estava a postos no local.
Os
quatro amigos foram para suas casas, não queriam mais emoção naquele noite.
No
outro dia, meu avô disse que o jornal tinha como manchete:
Mulher
encontrada morta na Rua 24. Deixou órfão seu gato preto que FOI ENCONTRADO
SOBRE ela, ronronando.
Ele
saiu correndo e foi avisar João, Sebastião e Pedro sobre a notícia. Os quatro
amigos ficaram encafifados e então resolveram averiguar que tal gato era aquele.
Não é que chegando na casa viram um gato paradinho na varanda, preto como
aquele que tinham visto morto, mas neste caso vivinho da silva.
Sebastião
foi perguntar para o policial que continuava montando em frente a casa:
- E o
gato morto da cozinha?
- Que
gato morto menino? Só encontramos este gato aí, que deve ser da defunta, pelas
fotos que vimos na escadaria. Vocês não querem cuidar dele?- perguntou o
policial, tentando convencê-lo.
- Deus
nos livre, deus nos livre. – disse meu avô e seus amigos que se botaram a
correr em disparada.
Conta-se
que a partir daquele dia, lá na Rua 24, gato é bicho respeitado e nunca pode
ser judiado.
Lá na
Rua 24
Esse
fato aconteceu
Meu avô
esteve lá
E desde
então nunca esqueceu.
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